Quando surge a discussão sobre o pudor das vestimentas, a primeira alusão feita, de maneira automática, mais por uma sedimentação cultural da fonte que por memória de uma leitura de fato feita, é a Engels. Diz-se, conforme inventou o autor, que o homem se apropriou da mulher como propriedade privada ao fundarem-se as bases do sedentarismo patriarcal. Ainda completa o disparate:
“O desmoronamento do direito materno foi a grande derrota do sexo feminino em todo o mundo. O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em simples instrumento de procriação.” (ENGELS, A origem da família, da propriedade privada e do Estado)
Com base nessa estapafúrdia afirmação, montada sobre pouco mais que especulações sobre antigas sociedades pagãs, vão dizer que discorrer sobre a vestimenta feminina é uma atitude machista, uma reles parte ilógica de uma superestrutura milenar que visa a perpetuar uma infraestrutura machista e, pior que isso, altamente misógina.
Curioso, no entanto, é que se ignore a posição de prestígio sem igual concedida à mulher no universo cristão. Enquanto na antiguidade clássica as fortes personagens femininas só fossem lembradas pelos seus vícios, ao longo da Idade Média as mulheres (e não poucas) compõem os números de baronesas e condessas, duquesas e rainhas, de abadessas superioras de mosteiros mistos, sem contar os milhares de mulheres canonizadas pela Igreja, ou as que parte fazem do limitadíssimo rol dos seus doutores. E não é para menos: o modelo de santidade católica por excelência é figurado em Maria, mãe de Deus, a maior entre todos os humanos, abaixo na hierarquia celeste somente do Senhor. Além disso (ou, talvez, por consequência disso), Régine Pernoud nos ilustra uma situação interessante:
Nas atas de tabeliães é muito freqüente ver uma mulher casada agir por si mesma: abre, por exemplo, uma loja ou uma venda, sem ser obrigada a apresentar autorização do marido. Os registros de impostos, desde que foram conservados (como em Paris, a partir de fins do século XIII), mostram multidão de mulheres a exercer as funções de professora, médica, boticária, estucadora, tintureira, copista, miniaturista, encadernadora, etc.
(PERNOUD, Idade Média: O que não nos ensinaram. 1994)
Entretanto, os trabalhos mais perigosos, como a guerra, continuaram sendo executados pelos homens, mais por um senso comum de responsabilidade e serviço dos homens que por uma proibição institucional às mulheres (vide o caso, por exemplo, de Santa Joana D’Arc). O senso de virilidade, que envolve a coragem, a honra, a proteção ao mais fraco continuaram integrando o rol de responsabilidades masculinas, sem contudo afetar a crescente liberdade e capacidade de mobilidade social das mulheres, que continuaram tendo por virtudes ideais a candura e a maternidade.
Provando na história, então, que a definição dos papeis sociais dentro do universo cristão não só não atrapalhou como possibilitou a dignificação das mulheres como nunca antes na história da humanidade, faz-se necessário entender plenamente, então, a filosofia e a prática cristã, especialmente durante o medievo, antes de levantar qualquer tipo de crítica ignorante e nociva que mais fazem atacar espantalhos que gerar de fato algum fruto produtivo.
Procedamos, portanto, à investigação.
1 – O PUDOR NO UNIVERSO MATERIAL
Mesmo se começarmos por uma abordagem puramente material, que entenda a razão de ser de um relacionamento a “busca pela felicidade terrena”, a experiência, o senso comum ou mesmo a psicologia eventualmente nos guiará rumo ao seguinte problema filosófico – problema, aliás, de fácil e imediata resposta:
“O que é mais bonito, mais elevado: o altruísmo ou o egoísmo?”
Apesar de reconhecermos que o amor próprio e a natural e consequente busca pela autopreservação são pilares da virtude da prudência, rara será uma resposta que as sobreponha ao que chamamos amor, em cujos pilares figura-se o altruísmo.
Se o altruísmo é, pois, mais elevado, podemos considerar que o que define a condição humana, como o amor, o altruísmo, a caridade, respeito etc. é, por natureza, mais importante e elevado que o impulso pelo prazer egoísta, que inclui o prazer sexual por si só. Logo, o prazer sexual só é moralmente válido se respeitar algumas condições elevadas, como as que definem o ser humano (e.g., o estupro é sempre imoral por desrespeitar diversos limites impostos por esses valores).
Nesse sentido, pode-se dizer que um casamento entre duas pessoas pressupõe a exclusividade, no primeiro degrau da escala moral, como forma de evitar o sofrimento mútuo (pelo ciúme, por exemplo). Portanto, o casamento não é uma concessão de direitos, mas justamente uma limitação dos próprios direitos sexuais, cujos impulsos jamais desaparecem, de modo a preservar o outro do sofrimento e, como parte da barganha desse primeiro degrau, preservar-se também a si.
Assim, alguém que se porte com a intenção deliberada de interferir em um acordo interpessoal dessa natureza (e.g. um homem que tenta seduzir uma mulher casada) está agindo imoralmente por, conscientemente e por um impulso egoísta, querer instabilizar um regime alheio que foi construído para evitar o sofrimento e buscar a felicidade mútua. Uma vez estabelecido um contrato interpessoal dessa natureza, a destruição desse contrato por outrem, ainda que resulte para si em lucro, configura justamente um jogo de soma zero, em que a felicidade de um representa necessariamente a desgraça do outro.
Some-se a esse cenário que os homens, por um detalhe biológico, sejam mais propensos a serem seduzidos pela concupiscência carnal. Sendo assim, não é exagero dizer que a mulher que, consciente do próprio poder de sedução, escolhe se vestir com pudor age com uma caridade que transcende em muito a simples autopreservação. Ao não querer ser motivo de discórdia em relacionamentos alheios, ela mostra que, acima da busca pelo prazer e do consequente medo do sofrimento, ela é capaz de entender o valor social dos acordos interpessoais. Que, malgrada a ausência de uma lei ou instituição que promova qualquer tipo de punição, é capaz de respeitá-los em nível de convenção cultural, o que, mesmo sem tocar no assunto das razões históricas, filosóficas ou teológicas, a coloca em um degrau de consciência moral que poucos hoje são capazes de atingir por conta própria (na maior parte dos casos, porque aprendem a não querer).
2 – O PUDOR NO DIREITO NATURAL
Valendo-nos o resultado do supradito, quando cruzamos a barreira do arranjo interpessoal com claros interesses materiais, deparamo-nos com um preceito do direito natural, que precede o direito formal em tempo e em primazia: em nome da justiça (suum cuique tribuere) ninguém deve ser responsabilizado pelas atitudes alheias. Logo, ninguém deve ser responsável pela criação de uma criança senão os seus próprios pais.
Dado, porém, que uma criança só atinge a maturidade física, intelectual e moral depois de mais de uma década, é natural e justo que os pais compliquem o seu relacionamento em função do surgimento de um filho. Pois o prazer e a felicidade individual deixam de ser o foco do relacionamento, dando quase que todo o seu espaço e importância à criança. Daí a instituição natural da família, um sistema de punições e recompensas que reage, na base da fofoca, de acordo com o cumprimento ou não dos esperados papeis sociais em um lar. Cabe aos pais, portanto, prover tudo o que a criança precisa para se desenvolver de maneira saudável até a sua maioridade. Vale dizer novamente que isso antecede em tempo e em primazia o direito formal.
Não que eventuais arranjos diferentes não sejam possíveis e necessários (às vezes por conta de pais loucos, ou ausentes, ou mortos prematuramente). Mas isso em caráter excepcional, pois em uma sociedade de sãos e justos, os pais jamais negligenciam os seus filhos. Isso é natural, e se não fosse assim a raça humana não teria sobrevivido nem à pré-história.
Nesse caso, vestir-se de maneira provocativa deixa de ter por consequência o mero sofrimento de um cônjuge, mas passa a envolver a estabilidade de uma família e a formação de uma criança.
3 – O PUDOR NA FILOSOFIA
As coisas se complicam ainda mais quando saímos da esfera das puras relações humanas e entramos na filosofia aristotélica. Lá, vemos que tudo o que existe só pode existir por participação em um ser que seja 100% ato e 0% potência; um ser que seja, simplesmente; um ser cuja ordem inerente deu origem ao cosmos, que só se pode ordenar segundo a Sua razão. Dessa forma, se entendemos que as coisas se orientam a um fim e, mesmo assim, insistimos em negar essa ordem, estamos nos rebelando contra uma razão cósmica que transcende até mesmo a nossa condição humana.
Mais, se continuarmos com Aristóteles, descobrimos ainda a perenidade da alma após a morte. Isso significa que, se temos participação em um cosmos e continuaremos tendo após a morte, talvez negar a ordem cosmológica das coisas em vida não seja uma postura muito inteligente; talvez a nossa postura em vida se reflita em nós após a morte – o que é naturalmente pensável, uma vez que os dados da nossa personalidade são características da alma e não do corpo.
Se a responsabilidade imposta pelo direito natural faz parte dessa ordem cosmológica, vestir-se mal pode induzir outrem a um erro de proporções cósmicas. Ainda que a linha argumentativa se dê de maneira idêntica à do direito natural, o senso de proporções se agrava quando se toma consciência de que fazemos parte de uma ordem que transcende em muito o nosso alcance pessoal.
4 – O PUDOR NA REVELAÇÃO DE CRISTO
Essa ordem, contudo, só é plenamente compreensível dentro do universo cristão. Cristo, feito homem, nos revelou que o matrimônio, por ser este parte constitutiva da criação, é dotado de natureza específica e indissolúvel desde o princípio dos tempos. Não deve ser surpresa que esses atributos coincidam plenamente com o que foi descoberto no direito natural e na filosofia aristotélica, ao mesmo tempo que acomodem perfeitamente – mas não fundamentalmente – a busca pela felicidade material.
Também em uníssono com a filosofia aristotélica está a confirmação de Cristo da perenidade da alma, oposta à fugacidade de tudo o que é terreno. Mas a Revelação tem um acréscimo: não só a alma é eterna, como ela encontrará consolação ao lado de Deus após a nossa morte corporal, contanto que nós digamos em ato o nosso “sim”. Esse último dado, contudo, revela por analogia – fundamentada no livre arbítrio – o nosso direito inalienável e respeitado por Deus de dizer “não”, i.e., de negar a bondade, de recusar agir conforme a cosmologia divina que nos orienta necessariamente para Ele. Naturalmente, todavia, essa negação, para a nossa eterna infelicidade e desconsolo, se perpetua após a morte.
Isso significa que, ao vestir-se sem pudor, a mulher não só tem o poder potencial de causar a infelicidade material de outrem, ou de perturbar uma família em nível mundano, mas tem o poder de ser o instrumento que manda um homem para o inferno. Em todos os níveis da argumentação, mas especialmente neste, a questão da vestimenta transcende a questão da preferência pessoal e se transfigura, conforme a seriedade das consequências, em um ato de caridade.
Por essas razões, e por algumas outras, o catecismo incorpora esses dados e chama todos, mulheres e homens, ao pudor, à modéstia, especialmente ao se prepararem para assistir à Santa Missa:
"Para se prepararem convenientemente para receber este sacramento, os fiéis devem observar o jejum prescrito na sua Igreja (222). A atitude corporal (gestos, traje) deve traduzir o respeito, a solenidade, a alegria deste momento em que Cristo Se torna nosso hóspede." (Catecismo da Igreja, no nº 1387).
Por isso, a quem compreende o peso dessa responsabilidade, vestir-se adequadamente é um ato de amor ao próximo, para que possamos ser luz ao invés de ocasião de pecado. Um ato também de prudência, pois a caridade leva o autor aos céus. Além de um ato de amor a Deus, que quer a salvação de todos.